Compêndio Júlia - O Prefácio do Regresso



O QUARTO DO VAZIO – A PINTURA 

Júlia vivia atormentada. Cria numa vida que não era a dela, com detalhes desfocados pela sua própria inexistência. Júlia sofria demasiado com o pouco que lhe faltava, admirando pouco o muito que estava a conseguir. A orientação dos seus objectivos visava um mundo material repleto de esplendor para lá da janela porta do mundo, razão pela qual continuava a jazer naquela cama espinhosa. Mas paulatinamente, de momento em momento, Júlia alterava os seus objectivos ainda que navegando pelo material. São paixões. São efémeras. É o acomodar do renascer. E a ausência que ela sentia apagava as paixões mas fortalecia o amor. Júlia já tinha iniciado a pintura das paredes do quarto e os vazios estavam a dar lugar ao amor próprio. Já tinha feito algumas investidas para o lado de lá da porta, e até já tinha aberto um pouco a janela, mas ainda não tinha reorientado os seus propósitos. A alcatifa ainda tinha muitas marcas de sapatos, mas começava-se a lobrigar algumas marcas repetidas. De sapatos melhores cujos donos já não queriam diluir a Júlia, mas preservá-la no seu amor próprio. Já não eram clientes. Já eram amigos, parte da sua vida que ajudavam de quando em vez, a pintar mais um pouco da parede. Um deles até lhe ofereceu uns panos que caem do tecto mais transparentes que os anteriores. As ilusões já não são tão privadas nem tão primitivas. Já há partilha. Já existe carinho. Já começa a haver brilho.


ACRÓSTICO DE JÚLIA NO CASTELO
O seu nome tem cinco letras.

Sentimentos efémeros  que sente,
Encantos profundos que mente,
Unidos em corpo de menina.

Naquele castelo em Roma,
Onde encontro a linda princesa,
Menina de rara beleza,
E de sublime aroma.

É aquela que bem domina,

Jogos de sedução e encanto,
Única na arte de bem amar,
Livre para o seu tempo afectar,
Iludindo amor no recanto,
A quem por ela procurar.


O QUARTO DO VAZIO – O CASTELO 

Júlia, endereço artístico de cinco letras que escolheu para que remetam a prosa que lhe dirigem, pintadas que estão as paredes do quarto que a cercavam e entreaberta a janela transparente porta do mundo, augura novos propósitos na condução da sua forma de subsistência. Já é Júlia que escolhe as marcas dos sapatos que impregnam a sua alcatifa. Já é Júlia que dita as horas, as regras, o tempo e o espaço para si própria. Antes, Júlia via as coisas pela frente e perguntava-se “Porquê?”, hoje ela lobriga situações pelas quais questiona “Porque não?”. Júlia encontrou o seu castelo, repleto de brilho e cor, juntamente com outras princesas que souberam brilhar para além do seu quarto do vazio, onde cada uma delas e juntas orquestram a quantidade e qualidade dos sapatos que pisam aquele soalho. Sim, já não se trata de uma velha e gasta alcatifa, mas de um soalho nobre, com estilo e presença que só se permite ser pisado por sapatos de qualidade. Que só se permite ser atravessado por quem procura qualidade. Sim, já é uma casa inteira e não um singelo quarto com uma cama e panos que caem do tecto. As ilusões ainda existem e são privadas, mas não tão primitivas como outrora, até porque para a maioria dos Homens, as ilusões são tão necessárias quanto a própria vida, e Júlia existe para satisfazer esse hiato da existência.


O QUARTO DO VAZIO – MEMÓRIA DA PAIXÃO DE JÚLIA

JÚLIA: Olha... Lembras-te de mim? A Júlia que passeia letras...
Ele: Como poderia não lembrar? Sublinhaste o desenho...
JÚLIA: Eu só pinto. No inesgotável quadro que cresce de ilusões...
Ele: ...beijando, olhando extasiada... arrebatada...
JÚLIA: És um amante...
Ele: ... és sensual, doce...
JÚLIA: ... um amante terno...
Ele: Deixaste aqui uma sombra viva...
JÚLIA: Eu gosto da sombra... e do movimento do corpo... e do ritmo...
Ele: ... a silhueta que criaste naquele espaço. O anoitecer... a lua a aparecer... o uivo dos nossos corpos enroscados...
JÚLIA: ... e as palavras a sobrevoar...
Ele: ... metade ouvidas, metade sentidas...
JÚLIA: ... e outras que nem damos por serem nossas...
Ele: ... e os nossos corpos a libertarem as almas que nos observavam...
JÚLIA: O corpo sem entender, chamou-lhes fantasmas...
Ele: ... ao som daquela música... ouvias a música?
JÚLIA: Na verdade estava completamente surda...
Ele: Eu só ouvia a música... eram os meus olhos que só olhavam para interiores...
JÚLIA: ... sombras das cores...
Ele: ... cores do vento ao brilho da Lua...
JÚLIA: ... lua lanterna que brilha e ilumina corpos celestes...
Ele: ... corpos que pairavam...
JÚLIA: ... pairavam nas estrelas. Lembras-te das estrelas?
Ele: Lembro-me da estrela interior que os meus olhos cegos conseguiam ver.
JÚLIA: Os teus olhos não estavam cegos... Olhavam para os meus...
Ele: Mas não viam... apenas sentiam...
JÚLIA: Como eu não te ouvia... só te sentia em mim.


JÚLIA - O BLOQUEAR DOS SENTIDOS

O quarto estava escuro. Apenas os sentidos mais apurados podiam tomar conta de uma situação que por si toldava a realidade. A pequena janela iluminava dois corpos puros de sentimento, levemente afastados das almas que em uníssono gritavam de prazer. As paredes contavam histórias, e escreviam-nas com tal poesia que os próprios teriam dificuldade em reproduzir. Júlia tem sensualidade a correr nas veias e desperta emoções que apenas existiam no domínio da imaginação. Os cinco sentidos estão bloqueados. O envolvimento só deixa margem a que se ligue o interruptor do apocalipse do racional. Os dedos percorrem a pele suave com delicadeza, os lábios tocam-se em ritmos alternados, a sombra dos corpos imprime pinturas no quadro de ilusões. A Lua e as estrelas cantam a paixão à plateia de dois seres que esqueceram o imediato, o importante, o real. Júlia observa o resultado da sua experiência. E gosta. Sente-se realizada e envolvida. Sente o hoje, o ontem e o amanhã, fundidos nas horas de magia que acabou de sentir e proporcionar. Panos que caem do tecto que já não servem para esconder as ilusões, mas para não permitir que olhares indiscretos irrompam pelo teatro de sentidos e emoções que decorre naquele quarto. É magia. É Luar. É Paixão.


RENASCER DE JÚLIA 

Ainda não foi possível vender tempo à prosa. É a transformação de horas no prazer que a escrita me devolve. Não é vaidade, tão pouco talento ou sequer equilíbrio. É limpeza e ornamentação do Ser. Do mais pessoal.

Como já disse algures, é em silêncio que "atiro palavras soltas à página na vã esperança que elas se juntem.". E por vezes resulta, por vezes é possível tocar-te com aquilo que aqui se passa... mas quase sempre preciso de preencher vazios para que estes dêem lugar ás letras e palavras. Não basta fluir bolhas de ar no papel. Eu preciso de lá estar e acontecer-me no texto.

Júlia irá renascer. Merece que conte um pouco mais da sua história emotiva e farta de dúvidas. E, contudo será possível juntar letras que descrevam o som do seu prazer para além da sua vida?


O REGRESSO DE JÚLIA

Júlia, bailarina de brincadeiras azuis no espaço a preencher dos homens, volta.
E quando regressa, com medo no coração, procura saber fechar os panos que cobrem mágoas, aos quais chama pálpebras, de cada vez que pinta uma ilusão num qualquer quadro de alguém que lhe cerra um envelope.
Júlia fecha os olhos a fugir do toque que invade o seu corpo e obriga-a a sorrir com paixão fingida a quem crê que o dinheiro aluga mais que um simples invólucro de Ser Humano. Manto que não deixa de ser dela, capa de indivíduo amolgada pelos anos de amor alugado, que hoje já pesa no seu orgulho e sobretudo no de quem a quer pelo coração e não pelo envelope.
Para o seu leito reserva a visita de apenas um amante, hoje. Aquele que lhe diz que quando priva com as curvas do seu corpo, sonha como não sonhava desde menino, duas vidas de Júlia atrás.
E satisfaz-se... desfruta o momento que apenas Júlia poderia proporcionar de forma tão falsamente verdadeira que até ela própria por vezes acredita.


O RENASCER DE JÚLIA
 
O nervoso miudinho faz-lhe tremer as pernas torneadas e bonitas como a uma criança virgem. As mãos dele percorrem a sua pele, ora com suaves e sensuais massagens, ora com firmes ímpetos. Pequenas alterações de ritmo induzem suspiros; fazem-na entreabrir os lábios carnudos, firmes, agora incertos a tentarem balbuciar palavras coerentes. Os olhos fecham e as pálpebras cerram apurando ainda mais os restantes sentidos.
De um movimento forte, repentino mas cuidadoso, ele gira o seu corpo; deixa-lhe o rosto a olhar as estrelas e uma total desprotecção consentida estampada no seu físico nu.
Um físico que Júlia estava habituada a ter de roupas caídas - nunca despido como se vê agora.
Mensagem de paixão resulta da linguagem dos seus corpos. Até no derradeiro deleite onde ele observa um sorriso inconsciente num rosto terno de olhos que descansam e reproduzem as mais belas imagens íntimas de si para si. As mãos tocam, os lábios nos lábios, a língua no êxtase do momento; a criar momentos; a fazer amor.

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